Em travessia inédita, povos originários resgatam a memória da Baía de Guanabara
Às 13h30, o barco Águamãe deixou o cais da Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, para uma travessia simbólica pelas águas da Baía de Guanabara. Mais do que um passeio, a jornada foi um reencontro com a história ancestral do lugar e uma reflexão sobre o futuro das relações entre humanidade e natureza.
Conduzido pelo ambientalista Ailton Krenak e pelo músico e pesquisador Mateus Aleluia, o percurso convidou o público a revisitar territórios que já abrigaram dezenas de aldeias indígenas e presenciaram a chegada dos colonizadores europeus e dos povos africanos escravizados. Hoje, essas águas misturam a memória dos antigos povos com o impacto da poluição e da exploração de petróleo, sem perder, no entanto, o vínculo com a pesca e o banho de mar.
A experiência, promovida pela Associação Selvagem Ciclo de Estudos — fundada por Krenak, Anna Dantes e Madeleine Deschamps —, foi aberta ao público mediante inscrição e integrou a programação da Temporada França-Brasil 2025, em parceria com o Museu do Amanhã e a Barcas Rio.
Durante o trajeto, apresentações musicais, performances e conversas deram voz às narrativas esquecidas da baía. Para a artista e jornalista Renata Tupinambá, o local é símbolo de acolhimento e ancestralidade. “A Guanabara é como um ventre que gera e protege. Ali estão guardadas histórias de povos e seres que ainda mantêm suas conexões espirituais com essas águas”, afirmou.
Renata declamou poemas e entoou cantos em tupi, relembrando que o povo Tupinambá, considerado extinto por séculos, foi oficialmente reconhecido novamente nos anos 2000. O retorno do manto Tupinambá ao Brasil, depois de permanecer na Dinamarca, representa para ela a prova viva da resistência cultural de seu povo.
O artista e líder espiritual Carlos Papá destacou a presença indígena no próprio vocabulário carioca. Nomes como Ipanema, Jacarepaguá e até a palavra “carioca” têm origem nas línguas nativas. “Muitos falam esses nomes sem saber o que significam. Revelar esses sentidos é resgatar a identidade escondida da cidade”, disse.
Papá também lembrou que as águas da baía abrigam inúmeros seres que compartilham o mesmo espaço com os humanos. Com a recuperação de algumas praias, como a do Flamengo, a vida marinha começa a retornar. “Quando entendemos que não estamos sozinhos — que há peixes, moluscos e crustáceos que dependem desse ecossistema —, passamos a agir com mais cuidado e respeito”, afirmou.
A educadora Cristine Takuá, do povo Maxakali, reforçou que os humanos têm muito a aprender com os demais seres vivos. “Abelhas, formigas, cotias vivem em cooperação. A humanidade, ao contrário, tem se distanciado dessa harmonia e causado feridas profundas na Terra. Precisamos reaprender a coexistir”, disse.
A Baía de Guanabara ocupa 337 quilômetros quadrados e abriga 40 ilhas. Recebe águas de 143 rios e córregos e já foi refúgio de baleias, rota de ouro e prata e, hoje, é um importante corredor econômico. Para povos amazônicos, como os Tukano e Dessano, ela está ligada a uma travessia mítica — o “Lago do Leite”, por onde passou a canoa-cobra, símbolo de transformação e origem.
Para a pesquisadora Anna Dantes, a história da baía reflete o modo como o país lida com seus recursos naturais. Ela recorda o desastre de 2000, quando um duto da Petrobras se rompeu, despejando mais de um milhão de litros de óleo nas águas. “Esse território carrega as marcas do modelo exploratório que moldou o Brasil e que ainda ameaça lugares como a Foz do Amazonas”, observou.
Às vésperas da COP30, que acontecerá em Belém, a antropóloga Nastassja Martin destacou a urgência de se ouvir os povos tradicionais. “São eles que convivem diariamente com essas águas e animais, que percebem as mudanças e sabem o que está em jogo. A crise climática é concreta e afeta a sobrevivência de todos”, afirmou.
Para Ailton Krenak, o caminho da humanidade precisa ser repensado. Em suas reflexões, ele diz que viver é, por si só, um ato sagrado, e que não é preciso deixar monumentos para provar a existência. “A vida já é um presente grandioso. Podemos passar pela Terra como pássaros que pousam, vivem e partem em silêncio, sem ferir o chão que nos sustenta.”


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